sexta-feira, 1 de julho de 2011

O Amanhecer de uma nova era


  • Maria Cristina de Castro Martins, com copydesk e Revisão de Vicente Filgueira.
    Introdução: "Um Ponto Equidistante entre o Atlântico e o Pacífico"
    "Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante de uma estrela que virá numa velocidade estonteante e pousará no coração do hemisfério sul na américa num claro instante depois de exterminada a última nação indígena e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias virá impávido que nem Muhammad ali virá que eu vi apaixonadamente como peri virá que eu vi tranquilo e infalível como Bruce Lee virá que eu vi o axé do afoxé dos filhos de Gandhi virá um índio preservado em pleno corpo físico em todo sólido todo gás todo líquido em átomos palavras alma cor em gesto em cheiro em sombra em luz em som magnífico num ponto eqüidistante entre o atlântico e o pacífico de objeto sim resplandecente descerá o índi e as coisas que eu sei que ele dirá fará não sei dizer assim de um modo explícito e aquilo que nesse momento se revelará aos povos surpreenderá a todos não por ser exótico mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido óbvio".
Conta Ana, menina criada pela Tia Neiva, hoje professora de escola pública, que o Vale sempre atraiu visitantes de todos os tipos: doentes em busca de cura, desesperados em busca de paz, curiosos, estudiosos, artistas, políticos, cantores e até compositores. 

Sentada na entrada da casa grande do Angical, morada da Tia Neiva quando encarnada, Ana recorda a visita de Caetano Veloso. Lembra que o cantor, rodeado de gente, pediu para ser recebido pela tia e que foi ali, naquele canto em que ela adorava ficar, que Caetano foi recebido. Conversou longo tempo, depois saiu e foi visitar o templo de pedra e que ficou tão emocionado com a imagem de Pai Seta Branca que compôs uma canção para o Vale: "Um Índio".
Na canção de Caetano, um índio descerá de uma estrela colorida brilhante e pousará no coração do hemisfério sul na América, num ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico. Para os seguidores da doutrina do amanhecer, o índio é o Pai Seta Branca, cacique inca, mentor espiritual da Ta Neiva. A estrela colorida e brilhante é a estrela manhante, lugar onde vivem os espíritos mais evoluídos que descem ao Vale do Amanhecer para trabalhar incorporando nos médiuns com a finalidade de promoverem a cura do espírito. O coração do hemisfério sul da América, o ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico, o centro do mundo, lugar predestinado para se encontrarem os que se preparam para a entrada do terceiro milênio é o próprio Vale do Amanhecer.
Na composição de Caetano Veloso, percebe-se que, no momento em que o índio descer, aquilo que se revelará aos povos, surpreenderá a todos pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio. Para os moradores do Vale do Amanhecer, o tempo se divide em ciclos milenares e a fundação e o encerramento de cada milênio está a cargo da intervenção direta de um personagem sagrado. No caso do milênio em que estamos vivendo, o responsável é o índio Pai Seta Branca que descerá e encerrará o milênio, levando todos os seguidores da doutrina do amanhecer para o Astral Superior, onde não mais encarnarão. Assim, com a evolução dos espíritos, tudo que antes parecia pertencer ao ocultismo, nada mais será do que o óbvio.
A canção de Caetano põe em evidência o personagem central mais sagrado da doutrina do amanhecer, o cacique inca Pai Seta Branca, cuja imagem está sentada no centro do templo de pedra, impávido, tranqüilo e infalível, preservado em pleno corpo físico, a esperar a entrada da nova era. A canção de Caetano também serve para suscitar questões do tipo: que estranha doutrina seria esta que teria como personagem central um cacique inca? Quem seria esse tal Pai Seta Branca? Como a doutrina teria se formado? De que maneira estariam estruturados seus rituais? Qual sua concepção de tempo e que importância teria a passagem do milênio e a entrada da nova era? Qual sua concepção de espaço e como os rituais se organizariam no espaço? E por que teria sido escolhido o Vale como lugar predestinado?
No intuito de ensaiar uma resposta para as questões acima mencionadas, o trabalho se estrutura em cinco partes: na primeira parte - Introdução: "um ponto eqüidistante entre o Atlântico e o Pacífico", apresenta-se, a partir da leitura de um compositor de música popular brasileira, o tema da doutrina do amanhecer, com seu personagem sagrado principal, cacique Seta Branca, com seu centro espacial situado entre os dois oceanos, o Vale do Amanhecer. Levntam-se ainda as principais questões que serão tratadas ao longo do texto. Na segunda parte - Vale do Amanhecer: localização e contexto histórico - reconstrói-se, em rápidas pinceladas, o contexto histórico da fundação da doutrina por meio da reconstrução da história da fundadora do Vale, Neiva Chaves Zelaya, a Tia Neiva. Apresenta-se ainda a localização e estrutura de funcionamento do lugar.
Na terceira parte - O amanhecer de uma nova era: doutrina e concepção do tempo - descreve-se a doutrina, suas entidades, seus rituais e sua concepção de tempo em ciclos milenares, que se fundam e se encerram. Mostra-se como a partir da "colagem" de outras religiões, em especial, da umbanda, catolicismo e espiritismo kardecista, cria-se uma doutrina original. Procura-se ainda entender como o messianismo e o milenarismo são enfocados pela doutrina. Na quarta parte - A simbiose espaço-ritos: uma análise do espaço sagrado e simbólico - descreve-se inicialmente os espaços sagrados e profanos e, em seguida, procura-se compreender a concepção de espaço sagrado da doutrina, a partir da relação de simbiose existente entre os rituais e o espaço sagrado. A quinta e última parte é dedicada a conclusão.
  1. VALE DO AMANHECER: LOCALIZAÇÃO E CONTEXTO HISTÓRICO
Considerado o maior fenômeno do sincretismo religioso brasileiro, o Vale do Amanhecer integra cultos do catolicismo, do espiritismo kardecista e de religiões afro-brasileiras, e possui entidades indígenas, astecas, maias, incas, ciganas, egípcias, gregas e até mesmo extraterrestres. Antes, porém, de entrar no tema propriamente dito da doutrina, de seus rituais e de suas concepções de tempo e de espaço, e com a finalidade de melhor compreender sua doutrina original, seria conveniente localizá-lo em seu espaço geográfico e contextualizá-lo historicamente.
Pequena comunidade que tem como princípio a doutrina fundada pela médium clarividente Tia Neiva, o Vale do Amanhecer localiza-se no quilômetro 10 da rodovia DF-15, a aproximadamente cinco quilômetros de Planaltina e quarenta de Brasília. O caminho de acesso mais fácil que liga Brasília ao Vale é pela BR-020, rodovia que liga Brasília a Fortaleza. Como seus próprios membros fazem questão de enfatizar, a localidade possui boa estrutura de atendimento gratuito para o público em geral bem como "cursos" de desenvolvimento dos médiuns e daqueles que se interessam em seguir os princípios do amanhecer. Todos os dias, das dez da manhã às dez da noite com plantões noturnos para casos de emergência, os médiuns estão sempre prontos a atenderem aos mais necessitados, sejam eles encarnados ou desencarnados, por meio de seus rituais e seus trabalhos mediúnico, iniciático, coletivo ou individual.
A história do Vale do Amanhecer está intimamente ligada à história da vida de sua fundadora, Neiva Zelaya Chaves, ou Tia Neiva, como a conhecem seus adeptos. Nascida em Propriá, Sergipe, em 30 de outubro de 1925, Tia Neiva ficou viúva aos 24 anos de idade. Com quatro filhos menores para criar, Tia Neiva trabalhou como fotógrafa e em seguida tornou-se a primeira mulher a se profissionalizar como motorista de caminhão. Como tantos nordestinos de sua época, veio para Brasília em 1957, com a finalidade de trabalhar na construção da capital, utilizando seus caminhões para carregar candangos. É durante a construção da capital federal que sua história de vida se modifica: de mulher simples e batalhadora, Tia Neiva, a partir de 1958, começa a receber as manifestações mediúnicas que transformaram o curso de vida.
Seus seguidores costumam, em vez de mencionar o ano de 1958, enfatizar a idade de Tia Neiva, 33 anos, idade da morte de Cristo, idade em que a vida de Tia Neiva começa a mudar: "por volta dos 33 anos de idade, já mãe de quatro filhos, foi surpreendida por visões de pessoas que já haviam morrido, e de espíritos que se apresentaram em roupagens simples de pretos velhos, índios, como amigos do espaço, esclarecendo e ensinando a médium, ao mesmo tempo em que a conscientizavam de que à ela Jesus confiou a missão de trazer ao mundo o exemplo do homem do III milênio, na figura simples e dinâmica do Doutrinador . No início, Tia Neiva percorreu muitos templos e igrejas, foi internada em sanatórios, buscando uma resposta para sua "loucura", já que não compreendia a finalidade daquelas visões. Com muito amor e tolerância, a espiritualidade tornou aquela mulher simples e batalhadora naquela que veio a ser um dos poucos exemplos de fé, amor incondicional e força, que o mundo já viu." (In: site do Vale do Amanhecer).
No ano de 1959, Tia Neiva, juntamente com D. Nenê, fundou a União Espiritualista Seta Branca (UESB), no Núcleo Bandeirante, com a finalidade de praticar o espiritismo e a caridade. No nome da própria UESB, já se percebe a importância do Pai Seta Branca como mentor espiritual da médium. Ainda em 59, após receber ordens espirituais para se mudar para a em zona rural, Tia Neiva transfere-se para a Serra do Ouro, quilômetro 73 da rodovia Brasília-Anápolis, em Alexânia. Ali funda uma pequena comunidade. Cinco anos depois da criação da UESB, Tia Neiva separa-se de D. Nenê: Tia Neiva e seus seguidores transferiram-se para Taguatinga enquanto Nenê muda-se para Goiânia. Em 1969, novamente recebendo "ordens espirituais de entidades superiores" com a finalidade de fundar nova comunidade rural, Tia Neiva e seu grupo mudam para a Fazenda Mestre D'Armas, que havia sido desapropriada em 1948 pelo Governo. Neste lugar será fundado o Vale do Amanhecer. No Vale, Tia Neiva lidera uma comunidade, desenvolve sua própria doutrina e em função dos rituais, constrói os templos até hoje existentes. Morreu em 1985, ou como preferem seus seguidores: "Tia Neiva desencarnou em 1985, deixando uma rica herança de ensinamentos".
Tendo em mente a história de Tia Neiva, pode-se, então, dividir a história do Vale em quatro fases distintas: a primeira, já descrita acima, vai de 1959 a 1969, é considerada a fase "migrante" do Vale, uma vez que a doutrina e a comunidade já existiam mas não possuíam ainda sítio definitivo. A segunda, a fase de pequena comunidade liderada por sua fundadora, vai de 1969 a 1985, ou seja, do período da instalação do Vale do Amanhecer à morte de Tia Neiva. É durante esta fase que a doutrina do amanhecer recebe acréscimos e modificações em seus rituais e em suas entidades. Também é nesta fase que, por meio de orientações recebidas por Yia Neiva dos planos espirituais mais elevados, são construídos os templos e os locais sagrados existentes hoje no Vale do Amanhecer. A terceira fase compreende o período de 1985 a 1992, momento a partir do qual, devido à morte de Tia Neiva, o Vale do Amanhecer vem a ser dirigido pelos trinos. Nesta fase, a doutrina e zona sagrada sofrem o processo de "estabilização", ou seja, doutrina, rituais e região sagrada passam a ter exatamente a mesma face que possuem até os dias de hoje. Os seguidores seguem de perto os ensinamentos de sua criadora, procurando manter-se como uma comunidade religiosa.
Em 1992, devido a uma disputa interna entre os trinos, tem início a quarta fase, estendendo-se até os dias de hoje. Mário Sassi, viúvo de Tia Neiva, um dos trinos e líder "racional" da comunidade acusa os filhos da Clarividente de permitirem e patrocinarem a mercantilização das propostas espirituais do Vale do Amanhecer, comportando-se, não como herdeiros espirituais mas como herdeiros materiais, ou seja, como herdeiros da fazenda, dispostos a dividirem e revenderem em lotes o terreno do Vale. Indignado, o líder Mário Sassi retira-se do Vale para Sobradinho, onde funda a Ordem Universal dos Grandes Iniciados. O Vale, que até então, por ordem da clarividente, só podia receber moradores pertencentes à seita, começa a ser loteado e a receber aqueles que melhor possam pagar pelos lotes. Em conseqüência dessa atitude, o que antes se constituía uma comunidade religiosa, passa a ser minoria na região. À exceção de sua zona sagrada, destinada aos templos e rituais, a face do Vale se modifica e passa a adquirir feições de uma cidade satélite como outra qualquer das cercanias de Brasília, com todos os problemas característicos de tais cidades-satélite, tais como o crescimento populacional desenfreado e o incremento da violência urbana.
De fato, estes problemas não existiam antes da morte de Tia Neiva, em 1985. Por meio do que se poderia denominar uma "política urbana" própria, Tia Neiva controlava e contornava firmemente todos estes problemas: com a finalidade de evitar o crescimento populacional, procurava restringir a doação de lotes somente para seguidores; para evitar a mercantilização das terras, doava em vez de vender os lotes; com o fito de evitar o aparecimento de violência urbana, procurava selecionar a entrada dos que iriam habitar no Vale e proibia a venda de álcool e drogas na localidade; para manter uma identidade visual própria da comunidade, permitia apenas que fossem construídas casas de madeira, semelhantes às casas dos candangos do tempo em que veio para a construção de Brasília.
De maneira a dar uma idéia do rápido e acelerado crescimento populacional do Vale do Amanhecer, é só comparar os poucos dados estatísticos existentes: em 1976, 256 habitantes (fonte: tese de Galinkin); em 1986, 3500 habitantes (fonte: livro de Dioclécio Luz); em 1991, cerca de 8000 habitantes (fonte: Jornal de Brasília de 2/05/91); em 1999, aproximadamente 22000 habitantes (fonte: informante do Vale do Amanhecer). Este último dado, referente a 1999, é uma cifra estimativa baseado em informações colhidas no Vale do Amanhecer, e pode não corresponder exatamente à realidade. De fato, não há dados oficiais na Codeplan, na qual podem ser encontrados levantamentos de cidades-satélites, mas onde não há dados sobre o Vale do Amanhecer.

  1. O AMANHECER DE UMA NOVA ERA: DOUTRINA E CONCEPÇÃO DO TEMPO
Salta aos olhos o caráter sincrético da doutrina do amanhecer. Da definição da doutrina apresentada no site oficial do Vale, depreende-se as linhas diretrizes que compõe este sincretismo: "a doutrina do amanhecer é uma ordem espiritualista cristã, que traduz heranças transcendentais de vários povos antigos - egípcios, gregos, romanos, maias, incas, nagôs, ciganos - com uma cultura original, trazida por Pai Seta Branca - cacique inca, que viveu na sua tribo, nas imediações da fronteira da Bolívia com o Peru, na época da conquista espanhola."
Do texto do site oficial, pode-se claramente depreender que a doutrina entrelaça as concepções do cristianismo e espiritismo ao se apresentar como ordem espiritualista e cristã. Tomando como ponto de partida as concepções de reencarnação e da existência de vidas passadas, presentes no espiritismo, a doutrina "herda" os compromissos adquiridos em vidas passadas dos diversos povos citados acima, desde os egípcios até os ciganos. Por meio dessa herança, mistura-se entidades de diversos povos e suas concepções religiosas. Assim, no panteão de entidades sagradas presentes na doutrina do amanhecer, estão presentes entidades do cristianismo, como Jesus Cristo e São Francisco, entidades do espiritismo, os famosos Dr. Fritz e Dr. Ralf, médicos alemães que viveram durante a Segunda Guerra Mundial e que se dedicam à cura dos menos favorecidos, entidades da umbanda em figura de pretos velhos como Pai João e Pai José Pedro, entidades de diversas civilizações antigas, como os maias, incas, egípcios, entre outros.
É interessante perceber que, nesse panteão de entidades, existe, além das entidades presentes em outras religiões, um entrelaçamento de entidades de distintas procedências, como é o caso do cacique inca Pai Seta Branca, figura de destaque no panteão sagrado. Para os seguidores da doutrina, Pai Seta Branca, de procedência inca, é a reencarnação do santo da igreja católica, São Francisco de Assis: "porque meu Pai Seta Branca, a origem dele, a última origem dele, a encarnação, a última encarnação do Pai Seta Branca foi perto do lago Titicaca, na Bolívia. Cacique indígena. E ele quis ser reconhecido assim, erguendo sua seta branca. Os bolivianos vieram aqui e sentiram uma relação muito íntima com a nossa doutrina. Digamos que eles são os primeiros a receber a energia que Pai Seta Branca passa para nós. Pai Seta Branca também foi São Francisco de Assis. Em várias encarnações que ele teve, uma delas foi São Francisco de Assis. E depois como cacique na Bolívia. Aí ele cumpriu sua missão cármica." (texto de entrevista com seguidor da doutrina do Amanhecer).
Esse sincretismo é percebido também nos símbolos: há símbolos que migram das mais diversas civilizações. O símbolo oficial do Vale do Amanhecer é a elipse: "Você vê ali a elipse, ela simboliza a cura e o conhecimento, a técnica de salvação de nosso Senhor Jesus Cristo. O amarelo é a ciência e o lilás é a fé. A fé e a ciência interligadas nesta passagem para o terceiro milênio na confirmação da técnica de salvação de Nosso Senhor Jesus Cristo, a doutrina que ele deixou para o amanhecer. Para nós, a elipse será o novo símbolo que substituirá a cruz. Não teremos mais a cruz simbolizando o sofrimento, um passo na evolução. O simbolismo da elipse serão as energias diretas, energias subindo e energias descendo." (texto de entrevista)
A cruz do catolicismo também está presente no Vale, mas como símbolo de sofrimento que deverá ser substituído pela elipse, na nova era, quando já não haverá mais sofrimento. Diversos outros símbolos de outras civilizações também se encontram presentes como a lua e o sol, das civilizações maias, incas e astecas; ou a estrela de David, símbolo de origem judaica, "estrela que segura muito as energias digamos negativas que vêm, entram em nosso portão; o primeiro impacto que recebem é a estrela, essa pequena estrela e depois passa para o templo já mais feito aquele trabalho, digamos, de limpeza; a estrela seria uma limpeza dessa energia dos espíritos sofredores que vão chegando recebem o impacto dessa estrela".(entrevista)
Esse caráter sincrético também pode ser observado ao relacionar a doutrina com a umbanda ou o espiritismo kardecista. Na conclusão de sua tese de mestrado, "A Cura no Vale do Amanhecer", Ana Lúcia Galinkin chama a atenção do leitor para este caráter de sincretismo. A autora toma emprestado o conceito de "bricolage" elaborado por Lévi-Strauss, para mostrar como a doutrina do amanhecer trabalha com o processo de "colagem" de elementos de outros contextos religiosos, dispostos de forma a estruturar um novo arranjo. Relaciona, portanto, elementos significativos oriundos do domínio religioso da Umbanda presentes na doutrina do amanhecer tais como o emprego de código semelhante de expressão corporal (postura, gestos e falas que identificam os pretos velhos e os caboclos); hierarquização das 'entidades'; grande criatividade mítica e litúrgica; entidades tutelares para cada adepto; emprego da mesma técnica de passes; e utilização do procedimento de consulta. Do espiritismo kardecista, relaciona, como elemento semelhante, a utilização da linguagem científica para explicação dos fenômenos religiosos.
Quanto aos elementos que se encontram presentes, ao mesmo tempo, na Umbanda e no Espiritismo, e que foram 'colados' à doutrina do amanhecer, Galinkin apresenta o dogma da mediunidade; o dogma da evolução espiritual, a lei do Karma; a teoria dos "fluidos" para a cura e a purificação; a proposição da cura como objetivo da religião; a concepção maniqueísta onde bem e mal se fazem representar por duas ordens de entidades; o ideal eclético enquanto projeto de combinar elementos religiosos de credos diferentes; a realização de exorcismo como faculdade de médiuns; a adesão à tese de "livre arbítrio" e a utilização de uma imagem para a representação do espírito.
Além do caráter sincrético da doutrina, um outro elemento importante de ser analisado é a concepção de tempo. Para os adeptos, a Terra é um planeta de expiação, que está situado entre o astral superior e os mundos inferiores. Para o Astral Superior irão os adeptos da doutrina após o seu próximo "desencarne", que deverá ser o último e que deverá coincidir com o encerramento deste milênio. Os adeptos concebem, pois, o tempo histórico como se fosse dividido em ciclos milenares e o fechamento de cada milênio ocorre por meio da intervenção direta de um personagem sagrado. No caso específico do milênio que está em vias de se encerrar, o responsável será o cacique Pai Seta Branca. "Foi o Pai Seta Branca quem trouxe o Jaguar (= aquele médium que doutrina os espíritos) para cumprir essa missão doutrinária evangélica para ajudar o homem nessa passagem para o terceiro milênio, a nova era." (entrevista)
"Por que o jaguar(= médium que doutrina os espíritos) chegou só agora se a humanidade está sofrendo há tanto tempo? O ciclo evolutivo da humanidade é de mil em mil anos, e num tem porque você vir nesse intervalo. É sempre na passagem de um ciclo evolutivo para o outro que a humanidade vai sofrer mais. Tá fechando o seu círculo agora. Aqui vai ser todo o resgate da humanidade. Tudo que ela tem de bom e de ruim vai ser pesado. Isto está na própria Bíblia. Esse ciclo está fechando. Não é de hoje para amanhã, não é de um mês para o outro, digamos que este ciclo se fecha em torno de um século. Estamos vivendo este fechamento. Por isso essas guerras estão chegando, essas contendas, muita coisa que a gente não ouvia falar, está acontecendo. Mas não é o fim. É só uma transformação."
É dentro deste quadro do momento presente em que o ciclo se fecha e em que o Seta Branca virá que se pode perceber o caráter milenarista e messiânico do movimento. É interessante notar que a figura principal é o Pai Seta Branca, que tendo cumprido sua missão cármica como cacique inca, retorna apenas para fechar o ciclo e recolher seus jaguares. Neste caso, a figura de Cristo é conservada, mas torna-se o que Mircea Eliade denominou de "Deus Ocioso".
Por fim, cabe ainda fazer uma breve menção a uma outra característica da doutrina do Vale do Amanhecer: o caráter pacifista do movimento, que já está presente na própria história do líder, o cacique inca Pai Seta Branca, conforme é relatado por um dos entrevistados. "E um grande conflito entre os espanhóis e os índios daquela região, eles foram buscar ajuda na aldeia do Pai Seta Branca. O cacique Seta Branca reuniu seus índios contra os espanhóis que queriam tomar aquela região. Poucos índios, uns trezentos, contra mais de dois mil espanhóis. Aí ele viu que não tinha muita chance, aí ele subiu ao morro, e de lá ergueu a sua lança branca e pediu as forças, as energias necessárias para apaziguar aquele povo, que os espanhóis não precisavam invadir aquela região através daquela conquista material, a região era tão grande e tinha terra para todos, que os índios poderiam ficar na sua região."
"Não precisava haver aquela guerra, aquela dizimação, que trouxesse a paz. Enquanto ele falava, todos ouviam e um cavalo, quedou-se e seu cavaleiro caiu ao chão. Com isso todos ficaram abismados e foram descendo de seus cavalos e saíram caminhando e deram meia volta e foram embora. Não houve aquela guerra que todo mundo esperava. E assim ele conseguiu criar a igreja no coração do homem, a mensagem de Deus, paz e harmonia, que ele realmente precisava fazer quando era São Francisco de Assis. E assim ele cumpriu a sua missão cármica e foi reconhecido como grande cacique seta Branca. E aí ele foi para os planos espirituais mais elevados, junto com Nosso Senhor Jesus Cristo, e daí trouxe o jaguar para cumprir essa missão.
  1. A SIMBIOSE ESPAÇO-RITOS: UMA ANÁLISE DO ESPAÇO SAGRADO E SIMBÓLICO

Em termos de forma espacial, o Vale está dividido em duas partes: uma sagrada e outra profana. Em vez de dar prosseguimento ao longo processo de secularização do espaço urbano que se desenvolve no Ocidente, no Vale do Amanhecer a forma espacial se aproxima "de uma visão do espaço urbano condicionada pela religião, pelo sagrado, por práticas e representações sociais que por sua vez está em conformidade com uma determinada concepção do mundo." ((Harouel, 1990: 9) Aquilo que se verifica na doutrina, se materializa na forma espacial, existindo estreita simbiose entre o espaço físico sagrado e os rituais. Assim, do mesmo modo que a doutrina traz heranças religiosas de povos do passado, a forma espacial materializa essa herança por meio da construção de símbolos espaciais próprios de outros povos: pirâmides (povo egípcio), cachoeira de mãe Iara (povo indígena), lago das princesas filhas de pretos velhos (povo negro), o jaguar, a lua e o sol no templo de pedra e no portal (povo maia), o turigano (povo romano), entre outros.
As áreas sagrada e profana estão claramente delimitadas. Em certos pontos, existe inclusive muros delimitando as duas áreas. Roger Caillois, no livro "O Homem e o Sagrado", explica que esta separação é necessária uma vez que o sagrado não deve ser contaminado pelo profano, pois a presença do profano degrada e arruina, destrói a bênção divina. Retira-se do lugar sagrado tudo o que pertence ao mundo profano para que o sagrado não perca sua eficácia.
O isolamento da área profana só fez aumentar com a morte de Tia Neiva e com o processo de especulação imobiliária iniciado por seus herdeiros. Hoje, as duas áreas são visivelmente distintas: a área sagrada, com seus templos, lagos, imagens, áreas de apoio com livrarias, locais para lanches e venda de material religioso, parece uma vitrine, sempre pintada, organizada e bonita, a esperar seus pacientes. A área profana, com suas ruas de areia, sem pavimentação (à exceção da rua principal que corta o Vale e por onde circulam os ônibus), com sua divisão em conjuntos residenciais, com seu traçado em malha xadrez, com seus problemas de esgoto, de violência urbana, em nada difere de uma cidade satélite comum, como Planaltina, de quem está próxima.
Como teoriza Mircea Eliade em seu livro "O Sagrado e o Profano", a área sagrada do Vale se comporta como um centro do mundo. Como centro em dois sentidos: no primeiro, é o centro de convergência, para onde os adeptos se dirigem em festas como a do dia do doutrinador, realizada no dia primeiro de maio, todos os anos. Nesta festa de consagração do médium doutrinador, dirigem-se ao Vale adeptos de mais de 250 templos externos, que são templos do Vale do Amanhecer em todas as partes do país, e que somam 450 000 seguidores da doutrina do amanhecer. No segundo sentido, o Vale é um centro pois nele se realiza a ruptura de níveis apresentada por Eliade: "uma abertura para o alto (o mundo divino) ou para baixo (regiões inferiores, o mundo dos mortos). Os três níveis cósmicos - Terra, Céu e regiões inferiores - passam a se comunicar." (Eliad, 1965: 34) No Vale, os espíritos dos mundos inferiores são trazidos pelos médiuns e encaminhados para mundos melhores para a sua recuperação. O espaço físico do Vale comporta-se como uma porta de comunicação entre mundos inferiores e superiores.
Vejamos o exemplo do ritual da estrela candente: "A estrela candente é um trabalho altamente desobsessivo. São trazidas energias pelos planos espirituais para a cura daqueles espíritos que não tem condições de incorporar. Um chefe de falange negativa é trazido num esquife, o simbolismo de um esquife, você tem 108 esquifes na estrela candente, digamos caixões, o simbolismo de um caixão, aí ele é trazido naquela pedra bruta e ali ele é doutrinado, recebe as energias que os médiuns vão manipular." Na estrela candente, está desenhada uma estrela de David com 108 esquifes de cimento em seu perímetro e no centro a elipse. Os aparás (incorporadores) deitam-se nos esquifes e trazem espíritos dos mundos inferiores. Em seguida, eles são doutrinados e encaminhados a mundos melhores. É a ligação entre os três níveis de que fala Eliade.
Nesse universo de circulação de energias entre os mundos inferiores e superiores, a forma predominante é a elipse. A elipse, como já foi mencionado acima, é a forma da circulação da energia: energias que sobem e descem. Essa forma é utilizada em quase todos os templos do Vale do Amanhecer: no templo de pedra, na estrela de Neru, no Turigano. É também adotado no lago das princesas. O formato da elipse não é apenas um elemento meramente plástico do espaço; ele é um organizador dos rituais. Nas igrejas católicas, a planta é unidirecional, possui eixo longitudinal, a lembrar que o caminho do homem segue uma única direção rumo ao divino. No templo de pedra, elipsoidal, os trabalhos seguem a ordem de uma elipse: entram pelo lado esquerdo, passam pelos tronos, pela cura, pela junção, pela indunção e pela linha de passe e saem pelo lado direito. Entram com a energia negativa, vão pegando a energia positiva e saem com energia positiva. "As energias correm no sentido horário."
Por fim, para dar uma idéia concreta da forma da cidade, descrevo o percurso da área sagrada: ao entrar na cidade atravessa-se um portal e entra-se na área sagrada, com seus templos -templo de Pedra, Turigano e Estrela de Neru, com a estrela de David, a elipse e a imagem de Cristo, com sua área de apoio, com a Casa Grande de Tia Neiva e sua estátua na praça. Em seguida, atravessa-se uma pequena rua de comércio do sagrado e entra-se na zona profana, em direção ao Solar dos Médiuns. Nesta área, existe o Lago das Princesas, o Oráculo, a Cachoeira de Mãe Iara, a Pirâmide, a Estrela Candente, a seta de Mãe Iemanjá e área de apoio.

Todos os anos, nas últimas horas do dia 31 de dezembro, Pai Seta Branca dá sua mensagem de fim de ano. São enviadas mensagens do tipo: "Cuidado com o padrão vibratório. Nada de mal acontecerá a vocês, pois jamais deixarei que toquem sequer num fio de cabelo de um filho meu!" "Este ano, para o nosso país, será muito difícil. Mas tudo passará! Tudo passará com a bênção do Meu Irmão, Nosso Senhor Jesus Cristo." "Mas do que nunca estejam preparados para o socorro final".Com essas mensagens, Pai Seta Branca adverte e encoraja os filhos e dá continuidade à doutrina trazida para a Terra por Tia Neiva. Desta forma, a doutrina se perpetua e adeptos continuam a chegar e a participar de seus rituais.
Com a proximidade do fim do milênio, fica no ar a pergunta: quando finalmente o índio descerá? Que caminhos seus adeptos seguirão? A doutrina persistirá?


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